A História da Arte e as representações do feminino – Parte
III.
IDADE MÉDIA
Esse período, conhecido com Idade Média ou Idade das Trevas,
iniciou-se em 476 d.C e terminou em 1453, compreendendo um período de cerca de mil
anos. A arte medieval possuía um forte foco religioso fundamentado no
cristianismo. Era, muitas vezes,
financiada pela Igreja; por figuras poderosas do clero, como os bispos; por
grupos comunais, como os dos mosteiros;
ou por patronos seculares ricos. Durante a Idade Média, o povo não possuía o hábito
da leitura, visto que eram poucos os que tinham acesso à escrita e que podiam
ler. Portanto, as artes visuais foram um dos principais meios encontrados,
principalmente pela Igreja Católica, de passar para a sociedade os valores do
cristianismo, pois a obra de arte, sendo uma forma de “escrita com cores e
formas”, conduzia o olhar dos iletrados para o conhecimento daquilo que se
pretendia ensinar e expressar.
Anna de Bretanha recebendo um livro de Antoine Dufour.
Miniatura feita pelo artista Jean Bourdichons em 1508. Museu
Dobrée – Nantes – França.
Virgen de la Leche – Barnabé de Módena (1372 - 1376) Santa Iglesia Catedral de Murcia.
Durante a Idade Média a arte sofre um lapso, e
praticamente bane a mulher e o feminino da pintura por um longo período de
tempo. A própria vida da mulher na sociedade medieval é apagada e reclusa, pois
os valores da religião cristã haviam impregnado todos os aspectos da vida
medieval. A noção do bem e do mal
orientava a arte e predominava a ideia de que a mulher representa o pecado, fazendo
com que se negasse o corpo passando a considerá-lo pecado. Havia uma
expressividade da pureza, da imagem idealizada: a imagem da santa, perfeita,
sem defeitos, sem expressividade a qual se atribuía à feminilidade associada à
maternidade, porém de uma forma distante e artificial, separada das angustias e
dos desejos femininos. Ainda assim,
havia registros de que a mulher considerada ideal possuía pele branca, olhos
negros, seios pequenos, faces coradas e barriga levemente saliente (a ideia de
maternidade era muito valorizada). A personificação desse arquétipo é a imagem
da própria Virgem Maria. A representação da mulher aparecia tanto na pintura
como na escultura, em geral revelando as Virgens, como sendo objetos de
veneração.
La
Virgen Del Rosario - Esteban Bartolomé Murillo - 1650.
Pietro_Lorenzetti - Madonna dei Tramonti, c.1330,
Basilica of San Francesco d'Assisi, Italy.
Virgen con el Niño y ángeles cantores de Pere Serra - Museo Nacional de Arte de Cataluña - témpera sobre madera final sec XIV.
La Maestà, Palazzo Pubblico di Siena - Simoni Martini.
Durante mais de 300 anos, a mesma Europa que viu nascer a
Idade Moderna e presenciou feitos como a conquista do Novo Mundo, a ascensão da
burguesia comercial e o fim do domínio feudal, fez das fogueiras um instrumento
de repressão e morte para milhares de mulheres condenadas por bruxaria.
John William Waterhouse - 1886 - Magic Circle.
Não há como se precisar com certeza onde as alegações de que
era possível manipular as forças da natureza passou dos deuses para os mortais,
mas os relatos de mulheres que possuíam este e outros dons, ou seja, as
chamadas “bruxas” (feiticeiras, xamãs) estão espalhadas por virtualmente todas
as culturas antigas do mundo, embora diferindo levemente em alguns aspectos.
John William Waterhouse – o Lamento de Circe.
A Deusa Circe era, na mitologia
grega, uma feiticeira.
A noção de que a própria natureza seria uma entidade por si só,
uma deusa, a “mãe natureza”
também é um conceito bastante antigo. Tanto é que, a palavra “natureza” vem do
latim “natura”, e significa “nascimento”. Aliás, a comunhão, o respeito e a adoração à
natureza formam a base da bruxaria original (também conhecida por Xamanismo ou
Antiga Magia) e embora alguns discordem desta afirmação, a bruxaria é provavelmente
nossa religião ancestral legitima e atávica, a qual se começou a praticar em
forma de ritos mágicos religiosos nas reuniões druidas há cerca de 5000 anos resumindo
as antigas crenças hoje consideradas pagãs.
Morgan Le Fay – Queen of Avalon - Anthony
Frederick Augustus Sandys - 1864, Birmingham Museum.
Na pintura acima podemos observar a imagem de uma
Valquíria, (do nórdico antigo "Valkyrja" , que significa "as que escolhem os
que vão morrer"), falando com o corvo, ave considerada de mau agouro e
portadora da morte. No folclore nórdico, o corvo “Valravn” comeu o coração do conhecimento
humano ganhando assim poderes sobrenaturais. As Valquírias são deidades da
mitologia nórdica, consideradas videntes ou “Nornas”, com poderes especiais
para controlar a sorte o azar e a providência.
As bruxas personificavam os medos da sociedade dos séculos
XV, XVI e XVII, adquirindo então conotações negativas. Na Idade Média, a caça às
bruxas se tornou uma perseguição às antigos cultos pagãos e matriarcais tidos
erroneamente como satânicos, com objetivos e crenças reputados como diferentes do
religioso, sendo considerados “seitas” e por isto, condenados por não seguirem
o que costumava pregar a Bíblia. A prática da bruxaria, magia ou xamanismo,
considerada superstição e sortilégio, torna-se então uma das principais formas
de repressão, sendo julgada maléfica e demoníaca relacionando-a intimamente com
a natureza feminina.
Dança das bruxas - 1842 - J.M Wright.
Frans Francken II - Witches' Sabbath - 1606, Oil
on oak panel.
Three Witches by Daniel Gardner, 1775.
As obras dedicadas à temática da bruxaria foram muito
difundidas entre os séculos XVI e XVII. Dentre eles o tratado ou obra mais
importante e terrível para as mulheres da época, foi sem dúvida o ”Malleus Maleficarum” ou “O Martelo das
Bruxas”, escrito por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James
Sprenger (em latim, Henrici Institoris e Iacobus Sprenger).
Malleus Maleficarum em uma edição de 1520.
Trata-se de um
exaustivo manual sobre a caça às bruxas, publicado primeiramente na Alemanha em
1487, e que logo recebeu dezenas de novas edições por toda a Europa, provocando
um profundo impacto nos julgamentos de pessoas acusadas de bruxaria no
continente por cerca de 200 anos. Dividia-se em três partes: a primeira ensinava
os juízes a reconhecerem as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes; a
segunda expunha todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os;
e a terceira regrava as formalidades para agir "legalmente" contra as
bruxas, demonstrando como processá-las, inquiri-las, julgá-las e condená-las.
Institoris e Sprenger oferecem um guia passo a passo sobre como conduzir o
julgamento de uma bruxa, desde a reunião de provas até o interrogatório, incluindo
inúmeras técnicas de tortura. Mulheres que não choravam durante o julgamento eram
automaticamente consideradas culpadas de bruxaria. O texto chegou a ser tão popular que
vendeu mais cópias do que qualquer outra obra à exceção da Bíblia.
Malleus Maleficarum em uma edição de 1669, Lyon.
Queima de uma bruxa na fogueira na localidade de
Willisau, Suíça (em 1447).
Torturas pela Inquisição de mulheres acusadas de bruxaria.
Instrumentos de Tortura - Inquisição.
Instrumentos de tortura
usadas pela Inquisição em mulheres acusadas de bruxaria. Os equipamentos
de tortura eram abençoados e aspergidos com água benta pelos padres antes de
serem utilizados pelos algozes.
Entre os artistas mais famosos por suas gravuras de bruxas
estão Hans Baldung, Albrecht Dürer, Abraham Saur's e Gerald d'Euphrates. Em
seus desenhos e pinturas as mulheres acusadas de bruxaria são retratadas como
mulheres velhas, de seios pendentes, pele enrugada e rostos grotescos,
alternando-as com bruxas mais novas e belas, todas nuas, normalmente em
episódios de “Sabbath”, cozinhando poções, fazendo malefícios, desenterrando
mortos, voando sobre bestas ou sendo levadas nas costas pelos demônios.
"Quatro
bruxas" 1497, gravura em cobre, 190x131 mm
Museum of Fine Arts, Budapeste.Albrecht
Dürer.
Claude Gillot - The Witches Sabbath.
Witches Sabbath Woodcut - 1510 - Hans Baldung
Grien.
A cidade de Bamberg, na Alemanha, terá em breve um monumento às
bruxas vítimas da Inquisição. Foram
nessa cidade que se realizaram os julgamentos mais cruéis do Santo Ofício na
Europa. Os cidadãos e as autoridades locais querem recordar, desta forma, “as
mil vítimas inocentes, mortas entre 1612 e 1631, na época da caça às bruxas”. Ao mesmo tempo, o monumento será uma
advertência contra o fanatismo e a discriminação.
Ilustração de queima de mulher acusada de bruxaria –
autor desconhecido.
Rothenburg -
Alemanha - MITTELALTERLICHES
KRIMINALMUSEUM - Carroça para prender e transportar bruxas.
Em Vardoe, na Noruega, podemos encontrar o Steilneset
Memorial, um monumento em memória ao julgamento e execução, no século XVII, de
91 pessoas, em sua maioria mulheres e crianças condenadas à fogueira por
bruxaria, fazendo desta região um dos mais importantes locais de “caça às
bruxas” da Noruega.
Steilneset-Memorial - Vardoe - Noruega.
Steilneset - Memorial - Vardoe - Noruega.
O monumento, projetado pelo arquiteto suíço Peter Zumthor, é
um longo corredor onde estão alinhados
quadros sobre as 77 mulheres, muitas delas menores de idade, e de 14 homens
acusados de heresia ou pacto com o diabo.
Corredor projetado por Peter Zumthor - Steilneset - Memorial.
Corredor projetado por Peter Zumthor - Steilneset - Memorial.
Em um espaço anexo, a artista americana Louise Bourgeois
criou uma cadeira com chamas no local onde se acredita que as fogueiras eram
acesas.
Espaço anexo criado por Louise Bourgeois.
Detalhe da cadeira em chamas.
Longe de ter sido obscurantista, a Idade Média foi uma época
em que o gênio humano se exprimiu de maneira inesquecível nas artes dando às
suas produções um toque transcendental, profundamente religioso inspirado numa
fé intensa. Não podemos negar as falhas humanas inerentes a esta época, que não
foram poucas e nem pequenas, inseridas em uma hierarquia determinante no
comportamento e nos espaços de poder no que tange o masculino e o feminino.
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