26 de jul. de 2014

ARTE - UMA METÁFORA FEMININA

A História da Arte e as representações do feminino – Parte III.
                               


                                                        IDADE MÉDIA


Esse período, conhecido com Idade Média ou Idade das Trevas, iniciou-se em 476 d.C e terminou em 1453, compreendendo um período de cerca de mil anos. A arte medieval possuía um forte foco religioso fundamentado no cristianismo. Era, muitas vezes, financiada pela Igreja; por figuras poderosas do clero, como os bispos; por grupos comunais, como os dos mosteiros; ou por patronos seculares ricos. Durante a Idade Média, o povo não possuía o hábito da leitura, visto que eram poucos os que tinham acesso à escrita e que podiam ler. Portanto, as artes visuais foram um dos principais meios encontrados, principalmente pela Igreja Católica, de passar para a sociedade os valores do cristianismo, pois a obra de arte, sendo uma forma de “escrita com cores e formas”, conduzia o olhar dos iletrados para o conhecimento daquilo que se pretendia ensinar e expressar.

Anna de Bretanha recebendo um livro de Antoine Dufour. Miniatura feita pelo artista Jean Bourdichons em 1508. Museu Dobrée – Nantes – França.

Virgen de la Leche – Barnabé de Módena (1372 - 1376) Santa Iglesia Catedral de Murcia.


Durante a  Idade Média a arte sofre um lapso, e praticamente bane a mulher e o feminino da pintura por um longo período de tempo. A própria vida da mulher na sociedade medieval é apagada e reclusa, pois os valores da religião cristã haviam impregnado todos os aspectos da vida medieval. A noção do bem e do mal orientava a arte e predominava a ideia de que a mulher representa o pecado, fazendo com que se negasse o corpo passando a considerá-lo pecado. Havia uma expressividade da pureza, da imagem idealizada: a imagem da santa, perfeita, sem defeitos, sem expressividade a qual se atribuía à feminilidade associada à maternidade, porém de uma forma distante e artificial, separada das angustias e dos desejos femininos. Ainda assim, havia registros de que a mulher considerada ideal possuía pele branca, olhos negros, seios pequenos, faces coradas e barriga levemente saliente (a ideia de maternidade era muito valorizada). A personificação desse arquétipo é a imagem da própria Virgem Maria. A representação da mulher aparecia tanto na pintura como na escultura, em geral revelando as Virgens, como sendo objetos de veneração.

                 La Virgen Del Rosario - Esteban Bartolomé Murillo - 1650.

Madonna e o Menino -  Duccio - Pintor italiano do período gótico c.1255 - c.1319.
  
Pietro_Lorenzetti -  Madonna dei Tramonti, c.1330, Basilica of San Francesco d'Assisi, Italy.

Virgen con el Niño y ángeles cantores de Pere Serra - Museo Nacional de Arte de Cataluña - témpera sobre madera final sec XIV.

La Maestà, Palazzo Pubblico di Siena - Simoni Martini.


Durante mais de 300 anos, a mesma Europa que viu nascer a Idade Moderna e presenciou feitos como a conquista do Novo Mundo, a ascensão da burguesia comercial e o fim do domínio feudal, fez das fogueiras um instrumento de repressão e morte para milhares de mulheres condenadas por bruxaria.

John William Waterhouse - 1886 - Magic Circle.

Não há como se precisar com certeza onde as alegações de que era possível manipular as forças da natureza passou dos deuses para os mortais, mas os relatos de mulheres que possuíam este e outros dons, ou seja, as chamadas “bruxas” (feiticeiras, xamãs) estão espalhadas por virtualmente todas as culturas antigas do mundo, embora diferindo levemente em alguns aspectos. 

John William Waterhouse – o Lamento de Circe.

                     A Deusa Circe era, na mitologia grega, uma feiticeira.

A noção de que a própria natureza seria uma entidade por si só, uma deusa, a “mãe natureza” também é um conceito bastante antigo. Tanto é que, a palavra “natureza” vem do latim “natura”, e significa “nascimento”. Aliás, a comunhão, o respeito e a adoração à natureza formam a base da bruxaria original (também conhecida por Xamanismo ou Antiga Magia) e embora alguns discordem desta afirmação, a bruxaria é provavelmente nossa religião ancestral legitima e atávica, a qual se começou a praticar em forma de ritos mágicos religiosos nas reuniões druidas há cerca de 5000 anos resumindo as antigas crenças hoje consideradas pagãs.

Morgan Le Fay – Queen of Avalon - Anthony Frederick Augustus Sandys  - 1864, Birmingham Museum.

Once a Week – Anthony Frederick Augustus Sandys - 1862 – Ink and Pen.



Na pintura acima podemos observar a imagem de uma Valquíria, (do nórdico antigo "Valkyrja" , que significa "as que escolhem os que vão morrer"), falando com o corvo, ave considerada de mau agouro e portadora da morte. No folclore nórdico, o corvo “Valravn” comeu o coração do conhecimento humano ganhando assim poderes sobrenaturais. As Valquírias são deidades da mitologia nórdica, consideradas videntes ou “Nornas”, com poderes especiais para controlar a sorte o azar e a providência.
  

As bruxas personificavam os medos da sociedade dos séculos XV, XVI e XVII, adquirindo então conotações negativas. Na Idade Média, a caça às bruxas se tornou uma perseguição às antigos cultos pagãos e matriarcais tidos erroneamente como satânicos, com objetivos e crenças reputados como diferentes do religioso, sendo considerados “seitas” e por isto, condenados por não seguirem o que costumava pregar a Bíblia. A prática da bruxaria, magia ou xamanismo, considerada superstição e sortilégio, torna-se então uma das principais formas de repressão, sendo julgada maléfica e demoníaca relacionando-a intimamente com a natureza feminina.

                                                                   Dança das bruxas - 1842 - J.M Wright.

Hans Baldung Grien - Weather Witches -  1523.

Frans Francken II - Witches' Sabbath - 1606, Oil on oak panel.


Three Witches by Daniel Gardner, 1775.

As obras dedicadas à temática da bruxaria foram muito difundidas entre os séculos XVI e XVII. Dentre eles o tratado ou obra mais importante e terrível para as mulheres da época, foi sem dúvida o ”Malleus Maleficarum” ou “O Martelo das Bruxas”, escrito por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger (em latim, Henrici Institoris e Iacobus Sprenger).

                       Malleus Maleficarum em uma edição de 1520.

Trata-se de um exaustivo manual sobre a caça às bruxas, publicado primeiramente na Alemanha em 1487, e que logo recebeu dezenas de novas edições por toda a Europa, provocando um profundo impacto nos julgamentos de pessoas acusadas de bruxaria no continente por cerca de 200 anos. Dividia-se em três partes: a primeira ensinava os juízes a reconhecerem as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expunha todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os; e a terceira regrava as formalidades para agir "legalmente" contra as bruxas, demonstrando como processá-las, inquiri-las, julgá-las e condená-las. Institoris e Sprenger oferecem um guia passo a passo sobre como conduzir o julgamento de uma bruxa, desde a reunião de provas até o interrogatório, incluindo inúmeras técnicas de tortura. Mulheres que não choravam durante o julgamento eram automaticamente consideradas culpadas de bruxaria. O texto chegou a ser tão popular que vendeu mais cópias do que qualquer outra obra à exceção da Bíblia.

Malleus Maleficarum em uma edição de 1669, Lyon.

Queima de uma bruxa na fogueira na localidade de Willisau, Suíça (em 1447).

Torturas pela Inquisição  de mulheres acusadas de bruxaria.

Torturas pela Inquisição  de mulheres acusadas de bruxaria.

Torturas pela Inquisição  de mulheres acusadas de bruxaria.

Cadeira de espinhos de ferro.

Instrumentos de Tortura - Inquisição.

Instrumentos de Tortura - Inquisição.


Instrumentos de tortura usadas pela Inquisição em mulheres acusadas de bruxaria. Os equipamentos de tortura eram abençoados e aspergidos com água benta pelos padres antes de serem utilizados pelos algozes.


Entre os artistas mais famosos por suas gravuras de bruxas estão Hans Baldung, Albrecht Dürer, Abraham Saur's e Gerald d'Euphrates. Em seus desenhos e pinturas as mulheres acusadas de bruxaria são retratadas como mulheres velhas, de seios pendentes, pele enrugada e rostos grotescos, alternando-as com bruxas mais novas e belas, todas nuas, normalmente em episódios de “Sabbath”, cozinhando poções, fazendo malefícios, desenterrando mortos, voando sobre bestas ou sendo levadas nas costas pelos demônios.

                 "Quatro bruxas" 1497, gravura em cobre, 190x131 mm
                     Museum of Fine Arts, Budapeste.Albrecht Dürer.

                                Claude Gillot - The Witches Sabbath.

Hans Weiditz Witches brewing magical potions 1514.

Witches Sabbath Woodcut - 1510 - Hans Baldung Grien.

A cidade de Bamberg, na Alemanha, terá em breve um monumento às bruxas vítimas da Inquisição. Foram nessa cidade que se realizaram os julgamentos mais cruéis do Santo Ofício na Europa. Os cidadãos e as autoridades locais querem recordar, desta forma, “as mil vítimas inocentes, mortas entre 1612 e 1631, na época da caça às bruxas”.  Ao mesmo tempo, o monumento será uma advertência contra o fanatismo e a discriminação.

    Ilustração de queima de mulher acusada de bruxaria – autor desconhecido.

Rothenburg - Alemanha - MITTELALTERLICHES KRIMINALMUSEUM - Carroça para prender e transportar bruxas.


Em Vardoe, na Noruega, podemos encontrar o Steilneset Memorial, um monumento em memória ao julgamento e execução, no século XVII, de 91 pessoas, em sua maioria mulheres e crianças condenadas à fogueira por bruxaria, fazendo desta região um dos mais importantes locais de “caça às bruxas” da Noruega.

                            Steilneset-Memorial - Vardoe - Noruega.


                        Steilneset - Memorial - Vardoe - Noruega.

O monumento, projetado pelo arquiteto suíço Peter Zumthor, é um longo corredor onde estão alinhados quadros sobre as 77 mulheres, muitas delas menores de idade, e de 14 homens acusados ​​de heresia ou pacto com o diabo.

Corredor projetado por Peter Zumthor - Steilneset - Memorial.


Corredor projetado por Peter Zumthor - Steilneset - Memorial.


Em um espaço anexo, a artista americana Louise Bourgeois criou uma cadeira com chamas no local onde se acredita que as fogueiras eram acesas.

                          Espaço anexo criado por Louise Bourgeois.

Detalhe da cadeira em chamas.

Longe de ter sido obscurantista, a Idade Média foi uma época em que o gênio humano se exprimiu de maneira inesquecível nas artes dando às suas produções um toque transcendental, profundamente religioso inspirado numa fé intensa. Não podemos negar as falhas humanas inerentes a esta época, que não foram poucas e nem pequenas, inseridas em uma hierarquia determinante no comportamento e nos espaços de poder no que tange o masculino e o feminino.

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